Interpretação Filosófica da Religiosidade

Interpretação Filosófica da Religiosidade

INTERPRETAÇÃO FILOSÓFICA DA RELIGIOSIDADE

Introdução

   Pesquisas e estudos antropológicos mostraram nos últimos dois séculos que o fenômeno religioso é mais antigo do que se pensava. Os ritos e crenças que formam a experiência religiosa humana foram encontrados entre os povos mais antigos, atravessando os séculos e milênios até chegarem aos nossos dias. As expressões religiosas humanas são diferentes de povo para povo e de época para época, mas tem como elemento comum o sobrenatural em termos universais[1]. Sua interpretação filosófica procura verificar sua realidade em si e a realidade quanto ao objeto que  está motivando a fé, procurando demonstrar a existência desse objeto, a possibilidade de torná-lo conhecido e estabelecer pressupostos racionais.

  1. Resultado de Evolução

         Procurando entender o fenômeno religioso, “E.B. Tylor (1872) propõe a sequência de animismo, fetichismo, politeísmo, monoteísmo”[2]. Pretendeu com essa sequência demonstrar que a religiosidade atual foi resultado de uma evolução, afirmando que o homem primitivo começou adorando as forças da natureza, animais e objetos, atribuindo-lhes poderes sobrenaturais. Em seguida, caminhou para a criação de deuses que receberam atributos da personalidade humana. Finalmente chegou à experiência religiosa da crença em um único Deus, considerando o Cristianismo como sua forma mais elevada.

         Por mais que essa teoria seja admitida por muitos estudiosos, houve objeções por parte de outros antropólogos, os quais defenderam a Teoria da Degradação, segundo a qual a primeira experiência religiosa foi com o monoteísmo,  que se corrompeu e chegou à idolatria e outras formas de culto[3]. Embora a Antropologia como ciência não tenha encontrado evidências de um “monoteísmo primitivo”, esta teoria encontra fundamentação nas páginas da Bíblia.

  1. Necessidade de interpretação

         Quer seja aceita através do evolucionismo ou da degradação, a expressão religiosa humana com seus ritos, crenças, sacrifícios, leis, penalidades, recompensas necessita ter uma interpretação filosófica também. Nesse sentido, a interpretação de Robert Lowie tem sido relativamente aceita: “Lowie limita-se a ver no fenômeno religioso uma oposição entre o natural e o sobrenatural, cuja origem estaria no temor do homem primitivo perante o desconhecido”[4].

         Essa interpretação, quando aplicada a experiência religiosa naturalista, encontra em Eduardo Herberto de Cherbury (1582-1684) uma explicação relacionada à natureza humana que responde à existência da Divindade: “Deus colocou em nós uma faculdade natural, uma luz ou instinto apto a descobrir a verdade. Graças a essa luz, podemos nós mesmos achar os elementos essenciais da religião”[5].

         Tomás de Aquino (1225-1274), muito mais como filósofo do que como teólogo, oferece como base para a experiência religiosa o raciocínio a respeito da existência de Deus. Racionalmente, ao provar a existência de Deus através dos cinco argumentos, criou a base da relação do homem com Deus[6].

         David Hume (1711-1776), partindo do método empirista, afirmava que a crença em Deus era produzida na sequência da criação dos deuses por parte dos homens. Os deuses seriam seres humanos aumentados diante das dificuldades pessoais, os quais finalmente foram ajustados num só, ainda mais forte. O valor estava no fato de que essa experiência mantinha os bons costumes e favorecia a vida social[7].

      Emanuel Kant (1724-1804) ao comentar a experiência religiosa diz que ela não existe: “Deus está fora da área da experiência real ou possível. Se afirmarmos a existência de Deus, deduzimo-la da contingência de seres”[8].

       Hegel (1770-1831), como idealista, parte do pressuposto DA EXISTÊNCIA DE Deus como Espírito e interpreta a experiência religiosa como a autoconsciência de Deus. É quando o indivíduo toma consciência do Espírito Absoluto[9].

         F.E. Schleiermacher (1769-1834) deixa para as trás as interpretações doutrinárias, a lógica e a ética apresentando o sentimento pessoal como base da experiência ao perceber a dependência de Deus e tendo com ele relacionamento[10].

         Feurbach (1804-1872) explica a experiência religiosa como uma atitude de mera projeção, diante de situações desagradáveis e inexplicáveis da vida. Dizia ele que “Deus é o sentimento que a pessoa tem de si mesma liberada de todos os aspectos desagradáveis”. Ao se sentir criança, o indivíduo cria o “homem grande” que tudo pode[11].

        l.A. Sabatier (1839-1901), ao perguntar sobre a origem da experiência religiosa, interpreta como inerente.  “Porque sou religioso? Jamais abordei essa questão sem chegar à mesma resposta: não posso deixar de ser; é uma necessidade moral do meu ser... sou religioso porque sou homem e não posso escapar da humanidade”[12].

         Soren A. Kierkgaard (1813-1855) explica a experiência religiosa como ato de escolha da pessoa quando se lança na fé em Deus. Escreveu: “E assim, digo a mesmo: eu escolho. Aquele fato histórico significa tanta coisa para mim que resolvo arriscar minha vida inteira naquele “se”[13].

         Karl Marx (1813-1883) associa a religiosidade com a opressão, com o desafeto, com o sofrimento do indivíduo, que dela faz uso para se anestesiar da realidade dura que o cerca, passando a viver na ilusão de outra realidade que não existe[14].

       William James (1842-1910) reduz toda experiência religiosa a uma reação da pessoa diante da vida, que cria a hipótese de Deus como um objeto de crença que passa a ser verdadeira enquanto convenha que exista, sendo então um sentimento subjetivo carente de objeto real, interpretando o fato como fenômeno da personalidade[15].

           Bérgson (1859-941) concluiu que a experiência religiosa é o resultante da intuição em vez do intelectualismo. É uma experiência mística que está presente em várias religiões e chegou à perfeição no Cristianismo. As experiências de alguns místicos afirmam existência de Deus e leva ao exercício da fé por parte de outras pessoas[16].

         Paul Tilich (1880-19065) explica que para alcançar o objetivo de demonstrar a existência do objeto da experiência religiosa, faz-se necessário definir o método que estamos usando. Falando da Filosofia da Religião, Tilich menciona os métodos crítico, fenomenológico e pragmático. Uma vez que o método crítico não pode lidar com conceitos abstratos e o método pragmático, em sua natureza, é a renúncia epistologicamente de todo o conhecimento, o método fenomenológico seria o mais apropriado, pois poderia, através da intuição, chegar à essência de qualquer manifestação religiosa[17]. Só através da intuição podemos lidar com a experiência religiosa.

         Richard Schaeffler (1912-1984) desenvolve seu pensamento numa época quando a principal ideia sobre Deus era de que ele estava morto e que o homem vive num mundo de vazio existencial, drogas, absurdo, pornografia e loucura, restando apenas a possibilidade de uma experiência religiosa cristã. Segundo sua conclusão, “Quando as pessoas recusam a resposta de Deus, elas estão vivendo em oposição à revelação do universo e contra a revelação que trazem em si mesmas. Estão negando a revelação de Deus sobre quem elas mesmas são [...]. Não estou dizendo que elas não têm senso moral, mas que não têm fundamentos para isso [...]. Esta é a sua maldição, esta é a sua tensão, ter de viver à luz da sua existência, à luz da realidade - a realidade total em todas as áreas -, viver ali, por mais que não tenham explicações suficientes para nenhuma dessas áreas”[18].

         Por mais que as pessoas que vivenciam experiências religiosas não tenham que apresentar argumentos racionais e provas a respeito de Deus como objeto a ser verificado, sendo para elas a experiência um fato suficiente, um fato naturalmente vivenciado, sendo a atitude de duvidar semelhante à atitude de duvidar do mundo em que vivemos[19], essa experiência precisa ser objeto de apreciação filosófica, conforme tem ocorrido ao longo do tempo, inclusive para que ela não seja considerada apenas um fenômeno psiquiátrico ou psicológico ou ilusório da personalidade.

         Conclusão

         Diante de tudo isto, estudando a experiência religiosa universal, isto é, aquela que inclui as experiências de todas as religiões existentes, há necessidade de ser realista e honesto a ponto de admitir que pessoas possam estar vivendo experiências explicáveis por determinantes enganosos, razões por que “não se deve aceitar de modo não crítico o Deus da experiência religiosa”[20]. Mais ainda: “Não se pode aceitar simplesmente como autênticas todas as alegadas experiências com Deus. Deve-se exercer juízo crítico acerca de tais questões. Nesse sentido, a experiência religiosa não pode ser separada do raciocínio filosófico”[21]

         Por isso, por mais que uma experiência religiosa seja subjetiva e Deus não possa ser provado como um objeto a ser analisado, o argumento filosófico vai em direção ao julgamento sobre a pessoa que testemunha sua experiência religiosa, isto é sua integridade, honestidade, ética e racionalidade. Nesse sentido, podemos afirmar sua realidade: “É incrível que algumas mentes mais brilhantes, científicas e filosóficas que já existiram, inclusive Agostinho, Aquino, Pascal, Kierkgaard tenham estado totalmente enganados acerca do encontro com Deus”[22]. Também a realidade da experiência religiosa vai em direção à pessoa que testemunha, argumentando que se ela declara sentir necessidade de Deus, o problema a ser rebatido não é a existência da necessidade de Deus, mas se essa necessidade foi suprida. Nesse sentido, “se um homem realmente tem necessidade de Deus, então seria incrível se não houvesse Deus em algum lugar para satisfazer aquela necessidade”[23]. A satisfação realizada confirma, portanto, a experiência religiosa. Finalmente, existe o exercício do ato de crer apresentada pela pessoa como base da experiência religiosa. Se a maioria da crítica se fundamenta no fato de que a crença poderia estar baseada em evidência insuficiente para sustentar a fé, o desdobramento desse fato é o não cumprimento de promessas feitas tendo a fé como base. Isto é, a falta de cumprimento das promessas feitas demonstraria a existência de uma crença enganosa. Todavia, se o que  acontece é o cumprimento de promessas feitas, este fato  prova que a fé em Deus na experiência religiosa estava sendo legítima e suficiente.

Edson Raposo Belchior, autor. 

 

[1] Huby, José. História das Religiões, São Paulo, Edições Saraiva, 1956, pg. 38

[2] Enciclopédia Mirador Internacional. Religião. Pg. 9763.

[3] Enciclopédia Internacional de Las Cienciais Sociais, pg. 221.

[4] Mirador, pg. 9763 e 9764.

[5] Todoli, José. Filosofia de La Religion. Madrid, Editorial Gredos, 1955, pg. 27

[6] Brown, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo, Edições Vida Nova, 1983, pg. 21,22.

[7] Idem, Ibidem, pg. 50.

[8] Todoli, op.cit, pg. 55

[9] Todoli, op. cit., pg. 80

[10] Brown, op. cit., pg. 79.

[11] Mirador, pg. 9767

[12] Todoli, op. cit., pag. 104

[13] Brown, op. cit. Pg. 89

[14] Brown, op. cit., pg. 93

[15] Todoli, op. cit, pg. 135

[16] Op. cit, pg. 140-142

[17] Tilich, Paul. Filosofia de La Religion. Buenos Aires, Edições Megapolis, 1973, pg. 18,32,29,34.

[18] https://www.pensador.com/frase/Mjk5MDgwOQ/

[19] Geisler, Norman e Feinberg, Paul. Introdução à Filosofia. São Paulo, Edições Vida Nova, 1983, pg. 2785.

  Idem, ibidem, pg. 278.

[20] Geisler, Norman e Feinberg, Paul. Introdução à Filosofia. São Paulo, Edições Vida Nova, 1983, pg. 2785.

[21] Idem, ibidem, pg. 278.

[22] Idem, Ibidem, pg. 276

[23] Idem, Ibidem, pg. 277.