ANALISANDO O DOM DE LÍNGUAS
Introdução
Como leitores dos relatos e ensinos encontrados nas páginas do Novo Testamento sobre a experiência de falar línguas estranhas, naturalmente ficamos curiosos em saber o que realmente teria acontecido naqueles dias do primeiro século da era cristã. Esse interesse aumenta diante do atual fenômeno religioso, também conhecido como “dom de línguas”, pois tem sido vivenciado por pessoas que conhecemos e que também querem nos envolver na experiência, além de ter gerado mais uma divisão entre igrejas cristãs na atualidade, as quais passaram a ser identificadas como tradicionais e pentecostais. Por isso, é necessário analisar o que ocorreu no passado e compreender o que acontece no presente.
- O fato no Novo Testamento
Os dois principais livros bíblicos que relatam e ensinam sobre o fato são Atos e I Coríntios. Escrevendo o livro de Atos, Lucas descreve o primeiro episódio da seguinte maneira: “E, cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos concordemente no mesmo lugar; e de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem”. (Atos 2.1-4). A sequência da narrativa mostra que o fenômeno foi inteligível, pois todos compreendiam a fala (Atos 2.6,7) e tratava-se de idiomas e dialetos (2.8-11), sendo interpretado como a manifestação do Espírito Santo que havia sido prometido. Lucas descreve o segundo momento quando o fenômeno ocorre da seguinte maneira: “E, dizendo Pedro ainda estas palavras, caiu o Espírito Santo sobre todos os que ouviam a palavra. E os fiéis que eram da circuncisão, todos quantos tinham vindo com Pedro, maravilharam-se de que o dom do Espírito Santo se derramasse também sobre os gentios. Porque os ouviam falar línguas, e magnificar a Deus”. (Atos 10.44-46). Sendo uma repetição do fenômeno anterior, os detalhes deixam de ser fornecidos, assinando apenas, mais uma vez, que o fenômeno era manifestação do Espírito Santo e que o falar em línguas estava legitimando a aceitação dos gentios, além dos judeus, no projeto de Deus. Lucas encerra a narrativa das ocorrências do fenômeno para confirmar uma experiência de verdadeira conversão na vida de 12 pessoas que tinham ouvido o evangelho e sido batizadas nas águas: “Recebestes vós já o Espírito Santo quando crestes? E eles disseram-lhe: Nós nem ainda ouvimos que haja Espírito Santo. Perguntou-lhes, então: Em que sois batizados então? E eles disseram: No batismo de João. Mas Paulo disse: Certamente João batizou com o batismo de arrependimento, dizendo ao povo que cresse no que após ele havia de vir, isto é, em Jesus Cristo. E os que ouviram foram batizados em nome do Senhor Jesus. E, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo; e falavam línguas, e profetizavam. E estes eram, ao todo, uns doze homens” (Atos 19.2-7). Novamente sem mencionar detalhes, pois seria o mesmo fenômeno, Lucas apenas testifica que o falar em línguas confirmava a verdadeira conversão. A abordagem seguinte foi feita pelo apóstolo Paulo quando escreveu sua carta aos coríntios, ao longo do capítulo 14 dessa carta. Respeitando a tradução feita, é necessário, todavia, perceber que não existe no original a expressão “estranha” atribuída às línguas faladas. Na verdade, de acordo com a palavra original “γλῶσσα” (glõssa) o significado primário trata do órgão da fala e no significado secundário significa “idioma ou dialeto usado por um grupo particular de pessoas, diferente dos usados por outras nações”. Fato que está em outros textos do Novo Testamento como “falar a língua nativa” (Mateus 9.33; 10.20; 12.46; 26.73; Marcos 14.70). Quando Paulo apóstolo diz que “não fala aos homens, senão a Deus”, não está se referindo a algo sobrenatural, mas apenas ao fato natural de que o idioma não está sendo traduzido, uma vez que “ninguém entende”, referindo-se a pessoas “indoutas”, isto é, pessoas sem cultura, razão pela qual é preciso que haja “intérpretes” para traduzir o que está sendo falado num determinado idioma. O objetivo de Paulo apóstolo é disciplinar ou organizar o que estava ocorrendo, pois no seu entendimento, “Deus não é de confusão”, sendo necessário pautar pela “decência e ordem”, isto é, pelo comportamento inteligente e racional. Por mais que alguns estudiosos do texto queiram ver nele um fenômeno sobrenatural, de êxtase ou transe, com estado alterado da consciência, esta não é a interpretação correta do ocorrido, principalmente lembrando que Corinto era uma cidade portuária, onde chegavam navios de vários países, com tripulantes e viajantes que falavam idiomas diferentes.
- O fenômeno em outras religiões
Se em outras religiões não existissem fenômenos que se caracterizaram pela emissão de palavras não inteligíveis, falas com sons estranhos, línguas extáticas, poderíamos realmente imaginar que o fenômeno atual de falar línguas estranhas em igrejas pentecostais teria sua origem no Novo Testamento. Todavia, esse não é o fato. A verdade é que o fenômeno é apresentando no texto conhecido como “Relevo de Wenamom”, que descreve a experiência de um jovem possesso que falou uma linguagem extática, em Biblos, na costa siro-palestina, datado de 1.100AC. Platão (429-347AC), filósofo grego mencionou experiências de pessoas que, em estado inconsciente, tornavam-se extáticas e sem controle mental, falando palavras que precisavam ser interpretadas e que eram acompanhas de visões e curas. Virgílio (70-19AC), em sua obra Eneida, descreveu a sacerdotisa Sibelina, da ilha de Dalfos, que ao se unir em espírito ao deus Apolo, na mitologia grega, começou a falar línguas incoerentes. Crisóstomo (século IV) referiu-se a pitonisas, que eram mulheres religiosas, que pronunciavam oráculos (palavras estranhas) em estado frenético e que eram interpretadas. Os Dervixes, da Pérsia, praticante aderente do islamismo sufista, entram em êxtase, mexendo o corpo e emitindo sons com a boca e que não são entendidos. Na Umbanda, estudos mencionam casos de pessoas, que em transe, chegam a inventar novas línguas, a partir de conhecimentos adquiridos desde a infância, emitindo sons os mais variados.
- Experiências históricas no cristianismo
Eusébio, historiador da igreja cristã durante vários séculos, menciona um cristão chamado Montano, morador da cidade de Adaba, na Mísia, no século II, que começava violenta e frequentemente a delirar, entrando em certo tipo de transe extático, proferindo palavras ininteligíveis, havendo nas reuniões também visões e revelações. Outros historiadores, como Mário L. Rehfeldt, mencionam convulsões, sons estranhos, transes entre os huguenotes (franceses calvinistas), jansenistas (católicos), quacres (místicos ingleses).
Aimee Semple McPherson (1890-1944), fundadora da Igreja do Evangelho Quadrangular, descreveu uma experiência vivida no início do movimento moderno pentecostal: "Num só momento, a bênção caiu. Rios de glórias das alturas vieram derramando-se para baixo, alegrias como vagalhões do mar passaram por cima de mim, finalmente ele tomou a minha língua e falou através de mim, numa língua que nunca aprendi, os louvores extáticos do seu próprio glorioso nome, assim como ele deu a plenitude para aqueles 120 naquele memorável dia de Pentecoste há tanto tempo. De repente, minhas mãos e meus braços começaram a tremer, suavemente de início e depois cada vez mais, até que meu corpo inteiro ficasse em tremedeira com o poder do Espírito Santo. Quase sem eu perceber, meu corpo deslizou suavemente para o chão e fiquei deitada sob o poder de Deus, embora sentisse-me arrebatada e flutuante sobre as nuvens onduladas de glória. As cordas da minha garganta começavam a contrair-se, meu queixo começou a tremer e depois sacudir-se violentamente. Minha língua começava a movimentar-se para cima e para baixo e de lado a lado, dentro da minha boca. Sons ininteligíveis como de lábios gaguejantes e de língua estranha começaram a sair de meu lábios”[1] Este relato de Aimee Semple McPherson, feito por ela mesma, descreve nada mais do que uma experiência de transe, à semelhança de outras tantas que tem sido testemunhadas.
- O transe no diagnóstico psicológico
Descrito como um “estado alterado de consciência onde podem ocorrer diversos eventos neurofisiológicos: anestesia, hipermnésia, amnésia, alucinações perceptivas, hiper sugestionabilidade etc.”, ele pode ser alcançado voluntariamente, bastando apenas que a pessoa tenha desejado tal fenômeno, assim como pode ser induzido através de drogas, inclusive fármacos químicos como barbitúricos e alucinógenos[2]. Outra maneira de induzir ao transe é através da hipnose, seja ela usada por profissionais, seja através de estímulos em ambientes religiosos. “O estado de transe ocorre quando há uma mudança na atividade cerebral, com uma diminuição da atividade das ondas cerebrais beta (associadas ao estado de alerta) e um aumento das ondas alfa (associadas ao estado de relaxamento). Essa mudança na atividade cerebral permite que a pessoa entre em um estado de consciência ampliada, no qual ela está mais aberta a receber sugestões e influências externas. Existem diferentes formas de induzir o estado de transe, sendo a hipnose uma das mais conhecidas”[3].
Estudos neurológicos do cérebro[4] revelam que, nesse estado alterado da consciência, as ondas beta de 13 a 24 oscilações, quando a pessoa está desperta, passam para ondas alfa de 8 a 12 oscilações[5]. A pessoa fica mais relaxada e confortável, sendo mais sensível a essa realidade espiritual. Outros estudos neurológicos informam uma diminuição do fluxo sanguíneo na área do lóbulo parietal esquerdo, responsável pela interação do eu consciente com o mundo que nos cerca através dos sentidos[6].
- Êxtases nos relatos bíblicos
Considerado como um estado psicológico que pode proporcionar vários benefícios para as pessoas que o experimentam e tendo sido registrado nas páginas da Bíblia como ocorrendo para descrever situações espirituais de comunhão com Deus, o transe acaba se tornando uma experiência desejada por religiosos, no objetivo de também viverem tais circunstâncias. Os dois grandes apóstolos Pedro e Paulo tem experiências em que a palavra usada para os que lhes aconteceu foi exatamente “ἔκστασις” (ékstasis), uma palavra para descrever transe, frenesi, arrebatamento com perda dos sentidos ou perda da consciência, significando um ato de “lançar a mente fora do seu estado normal, alienação da mente, estar fora de si” (Atos 10.10; 11.5; 22.17), além das ocorrências onde descreve um estado de admiração, de temor, de assombro. Neste sentido foi usado em Marcos 5.42, Lucas 5.26, Atos 3.10.
Outras experiências similares com outras palavras estão registradas em textos bíblicos, descrevendo acontecimentos semelhantes. Daniel diz ter tido uma visão angelical e que “caiu num profundo sono” (Daniel 8.18) e Ezequiel diz que teve uma visão angelical e “caiu sobre seu rosto, ouvindo aquele que lhe falava” (Ezequiel 1.27,28). João apóstolo também descreve uma visão com Jesus e diz ter “caído como morto” (Apocalipse 1.9,10; 4.2; 17.3; 21.10). Mesmo usando outras expressões, essas pessoas viveram uma experiência de êxtase.
Conclusão
O fato é que, cada vez mais, existe, no meio cristão, pessoas dizendo ter experiências místicas, chamadas de êxtase, significando transe, frenesi, arrebatamento. Os crentes que a estão experimentando dizem ter visões, ouvir vozes celestiais, receber revelações e dons espirituais, inclusive o dom de línguas. Tudo tendo os relatos bíblicos como base.
É evidente que não podemos levantar dúvidas quanto aos relatos bíblicos de êxtases, pois esses relatos são a fonte de autoridade para fazer da Bíblia a revelação especial de Deus aos seres humanos. É como escreveu o autor da carta aos hebreus: “Havendo Deus, antigamente, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos, nestes últimos dias, pelo Filho” (Hebreus 11.1,2). Todavia, com base na autenticidade e legitimidade desses relatos bíblicos, ao longo da história surgiram cristãos que, anelando intensamente viver as mesmas experiências de êxtase, tanto para distingui-los dos demais em termos espirituais, quanto para legitimar sua autoridade de liderança, inclusive quanto a expressarem o dom de línguas como evidência do batismo com o Espírito Santo, dando-lhes, assim, uma posição de destaque na comunidade religiosa. Sob a influência do clima espiritual carregado de linguagem bíblica, orações, cânticos e outros estímulos, esses cristãos foram movidos pela autossugestão e, inegavelmente, viveram algum tipo de transe, experimentando um estado alterado da consciência e outros efeitos no corpo. Sendo religiosos e estando num ambiente religioso, o estado alterado da consciência produziu alucinações, delírios, desvarios, frenesi considerados como espirituais, vindos de Deus. Isto sem falar em simulação de transe, possessão demoníaca, paganismo e doenças psiquiátricas. No caso de doença psiquiátrica, o transe já está identificado na Classificação Internacional de Doenças (CID.10. Item F.44.3) como doença mental: “Transtornos caracterizados por uma perda transitória da consciência de sua própria identidade, associada a uma conservação perfeita da consciência do meio ambiente”[7].
Os dons espirituais de língua referidos na Bíblia estavam associados aos idiomas e dialetos, no objetivo de promover a obra de evangelização e missões e não foram experiências místicas de fenômenos transportando cristãos para outra realidade espiritual. Devemos sempre lembrar, por outro lado, que se os profetas e os apóstolos Pedro e Paulo viveram experiências de êxtases, tais experiências não foram registradas como tendo ocorrido na vida de Jesus Cristo, nosso Salvador, Senhor e Mestre. Ele nos chamou para uma vida de oração com o Pai Celestial e não para uma vida de êxtases e transes. Ele disse: “Vigiai e orai”. Aliás, mesmo os apóstolos Pedro e Paulo não nos deixaram ensino para essa prática. Seus ensinos foram: “Orai sem cessar”. Uma atitude intencional e consciente.
Edson Raposo Belchior, autor.
Bibliografia
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BRUNNER, Frederick Dale. Teologia do Espírito Santo. São Paulo, Edições Vida Nova, 1986.
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GOMES, Gareth. Nosso Frágil Cérebro. São Paulo, Diagrama Texto, 1984.
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REVISTA RELIGIÃO E PSICOLOGIA. Curitiba, Editora InterSaberes, 1992
TAYLOR, William Carey. Dicionário do Novo Testamento Grego. Rio de Janeiro, CPB, 1965.
VAN DEN BERG, JH. Pequena Psiquiatria. São Paulo, Editora Mestre Jou, 1970
Referências
[1] BRUNER, Fredereck Dale. Teologia do Espírito Santo. São Paulo, Edições Vida Nova, 1986, pg. 100, 101
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Transe
[3] https://thaysmosko.com.br/glossario/o-que-e-estado-de-transe/
[4] GOMES, Gareth. Nosso Frágil Cérebro,. São Paulo, Diagrama Texto, 1984, pg. 181 e seguintes
[5]https://thaysmosko.com.br/glossario/o-que-e-estado-de-transe/#:~:text=O%20estado%20de%20transe%20ocorre,associadas%20ao%20estado%20de%20relaxamento).
[6] https://namu.com.br/portal/corpo-mente/meditacao/estado-de-transe/
[7] https://kiai.med.br/transtornos-de-transe-e-possessao-f44-3-cid10/